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A questão do poder nas sociedades primitivas

Pierre Clastres (1976)

sábado 29 de Janeiro de 2011

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Durante as duas últimas décadas, a etnologia conheceu um desenvolvimento brilhante, graças ao qual as sociedades primitivas escaparam, se não ao seu destino (o desaparecimento), pelo menos ao exílio a que as condenava , no pensamento e na imaginação do Ocidente, uma tradição de exotismo muito antiga. A convicção cândida de que a civilização européia era absolutamente superior a qualquer outro sistema de sociedade foi aos poucos substituída pelo reconhecimento de um relativismo cultural que, renunciando àafirmação imperialista de uma hierarquia dos valores, admite agora, abstendo-se de julgá-las, a coexistência das diferenças sócio-culturais. Em outras palavras, não se projeta mais sobre as sociedades primitivas o olhar curioso ou divertido do amador mais ou menos esclarecido, mais ou menos humanista; elas são levadas de certo modo a sério. A questão é saber até onde vai essa seriedade.
O que se entende exatamente por sociedade primitiva? A resposta nos é fornecida pela mais clássica antropologia quando ela quer determinar o ser especifico dessas sociedades, quando quer indicar o que faz delas formações sociais irredutíveis: as sociedades primitivas são sociedades sem Estado, são sociedades cujo corpo não possui órgão separado do poder político. É conforme a presença ou ausência do Estado que se opera uma primeira classificação das sociedades, pela qual elas se distribuem em dois grupos: as sociedades sem Estado e as sociedades com Estado, as sociedades primitivas e as outras. O que não significa, evidentemente, que todas as sociedades com Estado sejam idênticas entre si: não se poderia reduzir a um único tipo as diversas figuras históricas do Estado despótico arcaico, o Estado liberal burguês, ou o Estado totalitário fascista ou comunista. Cuidando de evitar, portanto, essa confusão que impediria, em particular, compreender a novidade e a especificidade radicais do Estado totalitário, assinalaremos que uma propriedade comum faz com que se oponham em bloco as sociedades com Estado às sociedades primitivas. As primeiras apresentam, todas, aquelas dimensão de divisão desconhecida entre as outras, todas as sociedades com Estado são divididas, em seu ser, em dominantes e dominados, enquanto as sociedades sem Estado ignoram essa divisão: determinar as sociedades primitivas como sociedades sem Estado é enunciar que elas são, em seu ser, homogêneas porque indivisas. E reconhecemos aqui a definição etnológica dessas sociedades: elas não têm órgão separado do poder, o poder não esta separado da sociedade.
Levar a sério as sociedades primitivas significa assim refletir sobre esta proposição que, de fato, define-as perfeitamente: nelas não se pode isolar uma esfera política distinta da esfera do social.
Sabe-se que, desde sua aurora grega, o pensamento político do Ocidente soube ver no político a essência do social humano ( o homem é um animal político), ao mesmo tempo que apreendia a essência do político na divisão social entre dominantes e dominados, entre os que sabem, e portanto mandam, e os que não sabem, e portanto obedecem. O social é o político, o político é o exercício do poder (legítimo ou não, pouco importa aqui)por um ou alguns sobre o resto da sociedade ( para seu bem ou seu mal, pouco importa também): tanto para Heráclito como para Platão e Aristóteles, não há sociedade senão sob a égide dos reis, a sociedade não é pensável sem a divisão entre os que mandam e os que obedecem, e lá onde não existe o exercício do poder cai-se no infra-social, na não-sociedade
É mais ou menos nesses termos que os primeiros europeus julgaram os índios da América do Sul, na aurora do século XVI. Constatando que os "chefes" não possuíam nenhum poder sobre as tribos, que ninguém mandava e ninguém obedecia, eles disseram que esses povos não eram policiados, que não eram verdadeiras sociedades; selvagens "sem fé, sem lei, sem rei".

É verdade que, mais de uma vez, os próprios etnólogos sentiram um embaraço quando se tratava, não tanto de compreender, mas simplesmente de descrever essa particularidade muito exótica das sociedades primitivas; os que são chamados lideres são desprovidos de todo poder, a chefia institui-se no exterior do exercício do poder político. Funcionalmente, isso parece absurdo: como pensar na disjunção entre chefia e poder? De que servem os chefes, se lhes falta o atributo essencial que faria deles justamente chefes, a saber, a possibilidade de exercer o poder sobre a comunidade? Na realidade, que o chefe selvagem não detenha o poder de mandar não significa que ele não sirva para nada: ao contrário, ele é investido pela sociedade de m certo número de tarefas e, sob esse aspecto, poder-se-ia ver nele uma espécie de funcionário (não remunerado) da sociedade. Que faz um chefe sem poder? Essencialmente, compete-lhe assumir a vontade da sociedade de mostra-se como uma totalidade una,
isto é, assumir o esforço concertado, deliberado, da comunidade, com vistas em afirmar sua especificidade, sua autonomia, sua independência em relação às outras comunidades. Em outras palavras, o líder primitivo é principalmente o homem que fala em nome da sociedade quando circunstancias e acontecimentos a colocam em relação com os outros. Ora, estes se repartem sempre, para toda comunidade primitiva, em duas classes: os amigos e os inimigos. Com os primeiros trata-se de estabelecer ou de reforçar relações de aliança; com os segundos, de levar a cabo, quando for o caso, operações guerreiras. Segue-se que as funções concretas, empíricas do líder desdobram-se no campo, poderíamos dizer, das relações internacionais, exigindo portanto as qualidades relativas a esse tipo de atividade: habilidade, talento diplomático para consolidar as redes de aliança que garantirão a segurança da comunidade; coragem, disposição guerreira capaz de assegurar uma defesa eficaz contra os ataques dos inimigos ou, se possível, a vitória em caso de expedição contra eles.
Mas não são exatamente essas, objetarão, as tarefas de um ministro de Assuntos Estrangeiros ou de um ministro da Defesa? Seguramente. Com esta única diferença, porém fundamental: é que o líder primitivo nunca toma decisões em seu nome, para depois impô-las àcomunidade. A estratégia de aliança ou a tática militar que ele desenvolve nunca são as suas próprias, mas as que respondem exatamente ao desejo ou àvontade explicita da tribo. Todos os eventuais expedientes ou negociações são públicos, a intenção de fazer a guerra só é proclamada quando a sociedade quer que seja assim. E, naturalmente, não pode ser de outro modo: com efeito, se um líder tivesse a idéias de conduzir, por conta própria, uma política de aliança ou de hostilidade com os vizinhos, não teria de maneira alguma meios de impor seus objetivos àsociedade, pois sabemos que é desprovido de qualquer poder. Na verdade, ele dispõe apenas de um direito ou, melhor, de um dever de porta-voz: dizer aos outros o desejo e a vontade da sociedade.
Por outro lado, quais são as funções do chefe, não mais como representante de seu grupo nas relações exteriores com os estrangeiros, mas em suas relações internas com o próprio grupo? É evidente que, se a comunidade o reconhecer como líder (como porta-voz) quando afirma sua unidade em relação às outras unidades, é que ele possui um mínimo de confiança garantida pelas qualidades que manifesta precisamente a serviço de sua sociedade. É o que chamam de prestígio, muito comumente confundido, e sem razão, com poder. Compreende-se assim muito bem que, no seio de sua própria sociedade, a opinião do líder, escorada no prestígio que ele desfruta, seja, eventualmente, ouvida com mais consideração que a dos outros indivíduos. Mas a atenção particular que é dada (aliás, nem sempre) àpalavra do chefe nunca chega ao ponto de deixá-la transformar em voz de comando, em discurso de poder: o ponto de vista do líder só será escutado enquanto exprimir o ponto de vista da sociedade como totalidade una. Disso resulta não apenas que o chefe não formula ordens, às quais sabe de antemão que ninguém obedeceria, mas também que é incapaz (isto é, não detém tal poder) de arbitrar quando se apresenta, por exemplo, um conflito entre dois indivíduos ou duas famílias. Ele tentará, não resolver o litígio em nome de uma lei ausente da qual seria o órgão, mas apaziguá-lo apelando ao bom senso, aos nos sentimentos das partes opostas, referindo-se a todo instante àtradição de bom entendimento legada, desde sempre, pelos antepassados. Da boca do chefe saem, não as palavras que sancionariam a relação de comando-obediência, mas o discurso por meio do qual ela se autoproclama comunidade indivisa e vontade de perseverar nesse ser indiviso.

As sociedades primitivas são portanto sociedades indivisas (e por isso cada uma se quer totalidade una): sociedades em classes - não há ricos exploradores do pobres -, sociedades sem divisão em dominantes e dominados - não há órgão separado do poder. É o momento agora de tomar totalmente a sério essa última propriedade sociológica das sociedades primitivas. A separação entre chefia e poder significa que nelas a questão do poder não se coloca, que essas sociedades são apolíticas? A essa questão, o "pensamento" evolucionista - e sua variante aparentemente menos sumária, o marxismo (engelsiano, sobretudo) - responde que é realmente assim e que isso se deve ao caráter primitivo, isto é, primário dessas sociedades: elas são a infância da humanidade, a primeira idade de sua evolução, e, como tais, incompletas, inacabadas, destinadas portanto a crescer, a tornar-se adultas, a passar do apolítico ao político. O destino de toda sociedade é sua divisão, é o poder separado da sociedade, é o Estado como órgão que sabe e diz o bem comum a todos, que ele se encarrega de impor.
Tal é a concepção tradicional, quase geral, das sociedades primitivas como sociedades sem Estado. A ausência do Estado marca sua incompletude, o estágio embrionário de sua existência, sua a-historicidade. Mas será de fato assim? Percebe-se bem que tal julgamento não é, na verdade, senão um preconceito ideológico, implicando uma concepção da história como movimento necessário da humanidade ao longo das figuras do social que se engendram e se encadeiam mecanicamente. Mas digamos que se recuse essa neoteologia da historia e seu continuismo fanático: com isso as sociedades primitivas deixam de ocupar o grau zero da história, grávidas que estariam ao mesmo tempo de toda a história por vir, inscrita antecipadamente em seu ser. Liberada desse exotismo pouco inocente, a antropologia pode então tomar a sério a verdadeira questão do político: por que as sociedades primitivas são sociedades sem Estado? Como sociedades completas, acabadas, adultas e não mais como embriões infra-políticos, as sociedades primitivas não têm o Estado porque o recusam, porque recusam a divisão do corpo social em dominantes e dominados. Com efeito, a política dos selvagens é exatamente opor-se o tempo todo ao aparecimento de um órgão separado do poder, impedir o encontro de antemão fatal entre instituição da chefia e exercício do poder. Na sociedade primitiva, não há órgão separado do poder porque não o poder não esta separado da sociedade, porque é ela que o detém, como totalidade una, a fim de manter seu ser indiviso, a fim de afastar, de conjurar o aparecimento em seu seio da desigualdade entre senhores e súditos, entre o chefe e a tribo. Deter o poder é exercê-lo; exercê-lo é dominar aqueles sobre os quais ele se exerce: eis aí, muito precisamente, o que as sociedades primitivas não querem (não quiseram), eis aí por que os chefes não têm poder, por que o poder não se separa do corpo uno da sociedade. Recusa da desigualdade, recusa do poder separado: mesma e constante preocupação das sociedades primitivas. Elas sabiam perfeitamente que, renunciando a essa luta, deixando de se opor às forças subterrâneas que se chamam desejo de poder e desejo de submissão, sem a liberação das quais não se poderia compreender a irrupção da dominação e da servidão, elas sabiam que perderiam sua liberdade.

A chefia, na sociedade primitiva , é apenas o lugar suposto, aparente do poder. Qual é seu lugar real? É o corpo social ele próprio, que o detém e o exerce num único sentido, ele anima um único projeto: manter na indivisão o ser da sociedade, impedir que a desigualdade entre os homens instale a divisão na sociedade. Segue-se que tal poder se exerce sobre tudo o que é suscetível de alienar a sociedade, de nela introduzir a desigualdade: ele se exerce, entre outras coisas, sobre a instituição de onde poderia surgir a captação do poder, a chefia. O chefe está sob vigilância na tribo: a sociedade cuida para não deixar o gosto do prestígio transformar-se em desejo de poder. Se o desejo de poder do chefe torna-se muito evidente, o procedimento empregado é simples: ele é abandonado ou mesmo morto. O espectro da divisão talvez assombre a sociedade primitiva, mas ela possui os meios de exorcizá-lo.
O exemplo das sociedades primitivas nos ensina que a divisão não é inerente ao ser do social, que, noutras palavras, o Estado não é eterno, que ele tem, aqui e ali, uma data de nascimento. Por que emergiu o Estado? A questão de sua origem deve ser assim precisada: em que condições uma sociedade deixa de ser primitiva? Por que as codificações que rechaçam o Estado falham, nesse ou naquele momento da história? Não resta duvida que somente a interrogação atenta do funcionamento das sociedades primitivas permitirá esclarecer o problema das origens. E talvez a luz assim lançada sobre o momento do nascimento do Estado esclarecerá igualmente as condições de possibilidade (realizáveis ou não) de sua morte.

Pierre Clastres.

Publicado na revista Interrogations, n.7, 1976.